A americana, Machado e a Arte...

Que obra de Arte mudou sua vida?

6/12/20243 min read

Recentemente, fez sucesso o vídeo de uma norte-americana que estava em um desafio de ler livros de vários países. Entre os primeiros da lista estava uma obra brasileira. Mas não qualquer obra. Era Memórias Póstumas de Brás Cubas. No vídeo, ela se desfaz em elogios ao livro de Machado de Assis, colocando-o simplesmente como o melhor livro que ela havia lido na vida. Não demorou muito para Memórias aparecer em listas de mais vendidos. Fico feliz, pois foi a obra que me fez enxergar finalmente por que Machado era constantemente colocado como nosso maior escritor.

Infelizmente, se perguntarmos sobre esse livro para nossos adolescentes que estão às portas dos vestibulares, é quase certo que a avaliação que eles farão estará longe daquela presente no vídeo da norte-americana. E é justamente aí que está a grande questão com que se depara qualquer pessoa que lecione literatura para o ensino médio. De um lado, sabemos que é necessário apresentar grandes obras aos alunos, para ampliar seu repertório cultural e fazer com que, futuramente, eles tenham construído um hábito saudável de leitura a partir da autonomia para fazer suas próprias escolhas em relação ao que ler. No entanto, por outro lado, sabemos que é justamente ao cobrarmos (olhem a palavra que estou usando) certas leituras na escola e fazermos avaliações sobre elas que podemos transformar grandes livros em simples tarefas chatas.

Lembro-me de ler Vidas Secas na escola e achar horrível. Anos mais tarde, reli e o coloquei na minha prateleira de livros maravilhosos! Nessa época, eu já era outra pessoa (e não o garoto com parco repertório para entender o livro) e estava lendo sem ser por obrigação. Isso fez toda a diferença. Tenho muito medo de estragar uma obra. E acho que corremos esse risco quando fazemos escolhas inadequadas em relação aos livros que trabalharemos na escola e à maneira como faremos isso. Se eu não tivesse dado outra chance a Vidas Secas, teria continuado a achar que era ruim. Que pecado…

Com Machado foi parecido. Antes da faculdade, ainda não me tinha dado conta da genialidade dele. Foi só num semestre sobre Machado de Assis no meu curso de Letras na USP, com os maravilhosos Paulo Pasta e José Miguel Wisnik (saudades das aulas dos dois) que tive a revelação, o momento de epifania.

E justamente analisando Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Que coisa maravilhosa foi aquela! Foi como se tirassem uma cortina da minha frente e me mostrassem tudo que sempre estivera diante de mim.

Felizmente, já tive vários momentos epifânicos em relação à Arte em minha vida. A descoberta de John Coltrane, de Stevie Ray Vaughan, de Madonna, de Elis Regina, de Agatha Christie, de Yasunari Kawabata, de Akira Kurosawa, de Manuel Bandeira, Drummond, Clarice Lispector, Rubem Fonseca… e tantas outras. E como isso é necessário! Para viver! Espero que já tenham tido essa experiência do encontro e da vontade de não largar mais o que se encontrou.

Mas sinto que tenho o dever aqui de dizer que Memórias Póstumas de Brás Cubas não é o melhor livro que li na vida. Claro que entendo o que a norte-americana sentiu quando o leu. Mas ele é o segundo melhor livro pra mim. Até aqui, nenhum outro se compara a Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa. O que foi aquilo!? Da leitura difícil nas primeiras páginas (quem já leu sabe do que estou falando), para uma viagem intensa pelo universo das palavras, pelos interiores de Minas Gerais e do ser humano… Quando a escrita de Rosa se assenta nos nossos ouvidos, tudo aquilo se transforma numa música que não queremos parar de ouvir. Ainda hoje, encontrar os nomes de Riobaldo, Diadorim, Joca Ramiro, Zé Bebelo e Hermógenes me traz um riozinho de sensações a percorrer o corpo. Como uma saudade de grandes companheiros de viagem.

Queria esquecer que li Grande Sertão só pra ter o prazer de o conhecer novamente…

E quando penso nisso me aumenta o medo de estragar para sempre um livro para meus alunos. De tirar deles a possibilidade de se encontrarem numa história, numa personagem. De sentirem correr-lhes pelas veias as palavras da página…

E me dói pensar que, muitas vezes, a obrigação da leitura e a necessidade da nota os faz ir atrás de resumos. Ou de resumos de resumos. A dor é saber que há todo um universo que poderia trazer tanta coisa a se sentir…

E aí, citando Fahrenheit 451, “a mente bebe cada vez menos”.

Acrescento: o coração bebe cada vez menos.