Nina, ChatGPT e Scarlett Johansson

O futuro já está aqui.

5/14/20243 min read

Nós havíamos ido ao mercado. Enquanto a Cris entrou para comprar algumas coisas, eu fiquei do lado de fora, passeando com a nossa Nina, uma misturinha fofa de Yorkshire com alguma outra raça. A Nina estava na rua e a recolhemos há alguns anos. Ela ficou um tempo na casa da minha mãe e da minha irmã, mas depois voltou pra junto da gente. Após a morte da Malu, da Mel e do Joe (pois é, perdemos três cãezinhos num espaço relativamente curto), a Nina é o nosso chamego. Depois de algum tempo de passeio, sentei-me do lado de fora do mercado, numa espécie de praça de alimentação, e coloquei a cachorrinha no colo. Ficamos os dois observando a movimentação de pessoas.

Em certo momento, percebi um garotinho, talvez com seus 8 anos de idade, brincando com algo no chão. Olhei mais detidamente e reparei que era um cãozinho mecânico, que andava enquanto algumas luzinhas acendiam.

Olhei para a Nina no meu colo e sorri.

Uma imagem dos tempos que estamos vivendo?

De um lado, um homem de meia idade (é… cheguei lá…) com sua cadelinha de carne e osso; do outro, uma criança com seu robozinho.

Na verdade, acho que é uma redução bastante simplista do que estamos experienciando atualmente, mas não consegui deixar de enxergar as relações.

Costumo dizer aos alunos que é a geração deles que terá a missão de tomar certas decisões bem complexas a respeito de uma nova realidade em que seres humanos e inteligências artificiais terão de achar a melhor maneira para conviverem. Haverá debate, haverá polêmica. Talvez haja violência. O fato é que essas inteligências já estão por aí há algum tempo e não param de evoluir. Chegaram para ficar. Ignorá-las ou demonizá-las não são, definitivamente, caminhos viáveis. Na área da educação, o ChatGPT chegou como uma bomba, pegando todo mundo desprevenido. Não culpo as escolas que imediatamente proibiram seu uso. Naquele momento, não se sabia ao certo do que se tratava, muitas decisões foram tomadas quase que por reflexo. Ou medo.

No entanto, o contexto agora é outro. Temos um tanto mais de clareza sobre o que está acontecendo. E está nítido que temos de estudar mais sobre o assunto. As possibilidades são maravilhosas. Mas os riscos também são consideráveis. Creio que ferramentas como o ChatGPT podem ser auxiliares poderosas em muitas áreas. No entanto, a explicação do agente Smith no filme Matrix é muito clara: “A partir do momento em que nós [inteligências artificiais] começamos a pensar por vocês, tornou-se nossa civilização.” E em seu livro A arte da vida, Zygmunt Bauman fala sobre as perdas que temos ao “terceirizar esforços”. Deixamos de ter aquela sensação do trabalho feito, de termos atingido um objetivo por meio de nossos esforços, de conseguirmos fazer algo que parecia impossível. E aí perdemos algo que ele afirma ser essencial para nossa sobrevivência: autoestima. E esse seria um caminho para nossa autodestruição. Alunos entregando um texto que, na verdade, foi feito totalmente pelo ChatGPT parece ser um exemplo microcósmico do que pode acontecer no nível macrocósmico social. Resolve-se um problema imediato, mas se cria um perigo gigantesco para um futuro nada distante.

Ainda continuo achando que a direção mais saudável será caminharmos juntos com essas novas ferramentas, o que traz um potencial praticamente infinito sobre o que pode ser atingido a partir daí. Seres humanos e máquinas. Assim como aparece em Matrix 4, filme que o futuro ainda vai demonstrar ser bom, com ideias bastante interessantes, ao contrário do que muita gente acha.

E, por falar em filmes - numa daquelas jogadas do universo que a gente nota e dá um sorriso - enquanto estou terminando este texto, a OpenAI - empresa responsável pelo ChatGPT - faz o anúncio da nova versão, chamada ChatGPT 4o (esse “o” é de “omni” - “tudo”, em latim). E entre as novidades está a capacidade de estabelecer uma conversa por voz em tempo real, habilidade que foi demonstrada ao vivo por dois desenvolvedores da empresa. E aí meu queixo caiu. Se você assistiu ao filme Ela (Her), vai perceber que a voz utilizada na demonstração é muito parecida com a de Samantha, a inteligência artificial (voz de Scarlett Johansson) pela qual Theodore (personagem de Joaquin Phoenix) se apaixona. Intencional? Sem dúvida! Assim como a IA do filme, o ChatGPT 4o apresenta nuances de comunicação oral e um tempo de resposta que realmente criam uma conversação muito mais natural do que IAs anteriores. Passaria fácil, fácil pelo Teste de Turing. Para alguém da área de linguagens isso é um prato cheio.

As coisas estão se movendo numa rapidez maior do que todos imaginávamos. Só espero que as soluções que teremos de encontrar para os possíveis problemas também não demorem a aparecer.

Olho para a Nina deitada aqui do meu lado enquanto termino este texto. Ela dorme tranquila, sem consciência de que o mundo está passando por transformações gigantescas.

A ignorância é uma benção?