Rituais

Você já viu Rafael Nadal jogar?

7/10/20244 min read

Se você já viu o tenista espanhol Rafael Nadal jogar, sabe que ele tem toda uma sequência de gestos antes de cada saque: a batida da raquete nos tênis, a ajustada nas mangas da camiseta, o toque no nariz, nas orelhas… Mas não é só aí que aparecem alguns padrões. Mesmo na maneira como suas garrafas são colocadas ao lado da quadra percebe-se um hábito. Alguns podem achar que tem relação com alguma obsessão ou superstição. Mas está longe disso. O que Rafael Nadal faz tem a ver com rituais.

Quando as pessoas ouvem a palavra “ritual”, muitas coisas podem vir à mente. Algumas bem negativas. Mas a verdade é que um ritual é um processo construído por alguns passos pré-estabelecidos, com o objetivo de criar um determinado estado mental a fim de trazer significado a algo. O próprio Nadal já disse, em entrevistas, que seus rituais o ajudam a entrar num mundo só dele e do jogo em que está, sem que nada exterior possa atrapalhá-lo.

Nas artes marciais tradicionais, há todo um “kata” (forma) para se entrar no tatame, para se cumprimentar, iniciar o treino etc. Não se trata apenas de elementos exteriores, sem significado. Depois de algum tempo praticando esses rituais, basta fazê-los para que nossa mente passe a funcionar de um jeito diferente. Pergunte a algum praticante avançado o que muda quando ele se curva antes de subir ao tatame ou até mesmo quando coloca seu dogi (seu uniforme de treino, conhecido mais informalmente como kimono).

Desse modo, longe de serem simplesmente atos mecânicos e repetitivos, rituais - se bem construídos - têm relação com modificar a mente e criar significados.

Lembro-me daquele que, a meu ver, foi o melhor projeto de que participei nesses anos todos de magistério. Foi com a turma de 2005 na primeira série do ensino médio. Inesquecível. Nós, do grupo que pensava os passos daquele projeto, tivemos alguns encontros com uma especialista em rituais e mitologias. Aprendemos muito com ela. E, assim, pudemos criar um projeto que, pouco a pouco, foi construindo significados com aqueles alunos e alunas. Foi o ano em que dormimos todos no colégio. E não tivemos nenhum probleminha naquela noite. O mote da experiência era “pessoas que dormem juntas sonham juntas”. O sonho era a temática principal naquele ano. Lembro-me também de que a finalização daquele projeto se deu num sítio, no qual nós pintamos os rostos uns dos outros e atravessamos uma espécie de “portal” feito de galhos de árvore. Estranho, né? A questão é que, para todo mundo ali, depois de todas aquelas experiências do ano, não era apenas passar por um monte de galhos. Era uma experiência transformadora. Era deixar para trás alguém que éramos, para abraçar quem seríamos dali em diante. Preciso dizer que foi emocionante?

Pois é. Rituais.

A vontade de escrever sobre isso vem da percepção (minha, e só minha) de que estamos abandonando rituais em nome de uma visão supostamente mais realista. Vejo muitas pessoas encarando rituais apenas como algo místico e, então, sem sentido. Assim, seria até algo atrasado, ultrapassado, crer em rituais. Parece que estamos vivendo um momento em que destruímos muita coisa que nos trazia significado, em nome de uma suposta segurança científica. Digo suposta porque a ciência (que engloba muito mais do que as pessoas pensam que engloba) vai comprovar os efeitos que um real ritual tem em nosso cérebro, em nossa mente, em nossa subjetividade. Mas parece que o que vale, por exemplo, é o medicamento. Parece que essa é a validação científica que se quer atualmente.

Mas o problema é que nós precisamos de muito mais.

Joseph Campbell, talvez o mais conhecido especialista em mitologias que já tivemos, disse que o ser humano precisa daquilo que vai além do concreto. Aquilo que transcende. Segundo ele, se nos aferrarmos apenas ao que é concreto, chegará um momento em que bateremos em um muro. E esse é o momento que faz com que muitas pessoas não tenham em que se agarrar. É o momento em que não se vê mais significado em nada. A vida perde o sentido. E só nós podemos dar sentido à nossa vida. Ninguém mais. Cada um terá seu Caminho. Seus rituais. Aquilo que lhe faz sentido. Como Buda disse, “nossa mente cria nossa realidade”.

Lembro-me de um aluno bastante problemático daquele ano de 2005. No final de todo o processo, já em dezembro, ele nos procurou e disse: “Agora eu percebo o que vocês queriam fazer com a gente o tempo todo. E estou aqui para agradecer.”

O que dizer sobre isso?

Bom, eu poderia ficar escrevendo muito mais sobre rituais, simbolismos, significados, “relegere”… Meus alunos e alunas sabem o quanto isso é do meu interesse. Mas esse espaço aqui é um blog. Não pretendo escrever nenhum tratado sobre nada. Além do mais, tudo o que escrevo aqui é apenas meu olhar sobre as coisas. Nada mais. Esse é o espaço que eu quis para que eu compartilhe esse olhar. Somos diferentes. Pensamos e sentimos diferentemente. Mas acho que ouvir um pouco o que os outros têm a dizer pode ser enriquecedor, mesmo na discordância.

Obrigado por chegar até aqui.