"Somos todos palhaços"
E aquela noite de sarau...
4/28/20244 min read


Em 2003, ao ser admitido no colégio em que até hoje leciono, comecei a organizar um sarau para que alunos e alunas tivessem um espaço para compartilhar música e poesia. O primeiro deles aconteceu numa sala de aula comum, com pouco mais de 20 pessoas. Os anos foram passando e o sarau foi mudando. Mais gente participando, mais estrutura… E eu fui percebendo que, além de música e poesia, todo mundo também estava ali para compartilhar outra coisa: afetos. Acho que o sarau conquistou seu espaço nesses 20 anos porque permite que aconteça algo cada vez mais raro hoje em dia: que as pessoas realmente compartilhem momentos. Momentos que lhes afetam. Sem medo de julgamentos. Em todo primeiro sarau de cada ano, ao explicar para os novos participantes como aquele momento funcionava, eu repetia: “Não importa como a apresentação aqui na frente será, nós sempre vamos aplaudir. Aplaudir a coragem que a pessoa teve em se apresentar. Aplaudir a generosidade da pessoa em dividir com todo mundo algo que ela quis expressar.” O aplauso no sarau sempre significou: “Nós estamos aqui com você, vivenciando, sentindo esse momento que nos proporcionou.”
No ano passado, 2023, deixei a organização do evento. E recentemente, no início de abril de 2024, fui ao primeiro sarau não coordenado por mim (que bom que ele continua existindo). Que noite intensa. A cada apresentação, os inúmeros rostos de todos esses 20 anos passavam pela minha mente. Foram poucos os momentos em que as lágrimas não escorriam pelo meu rosto. Essas lembranças ninguém vai tirar de mim.
E, numa dessas combinações do Universo, também recentemente vi o trailer de Coringa: delírio a dois, a continuação do filme de 2019. Fui inundado por sentimentos. O primeiro filme, Coringa (Joker), dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix, mexeu muito comigo. Desde minha adolescência é meu vilão preferido. Há algo nele que sempre me disse tratar-se de uma personagem muito mais profunda do que parecia. E a obra de Todd Phillips me atingiu como um relâmpago. Saí atordoado do cinema. E escrevi um poema, ainda sob o impacto do filme. Na noite seguinte a essa estreia que me tirou do lugar, teríamos um sarau no Ensino Médio. Decidi ler meu texto lá. Mas senti que não queria apenas ler o texto, eu desejava fazer mais para mostrar o quanto eu estava afetado pelo filme. Resolvi, então, fazer uma espécie de performance. Enquanto meu grande companheiro de sarau, o professor Marcos Iki, colocava a música “That’s life”, tocada ao final de Coringa, eu me maquiava de palhaço, para depois ler meu poema e dançar com vários alunos e alunas ao som de Frank Sinatra. Acho que nunca mais farei uma coisa dessas. Mas aquela noite foi maravilhosa… Ao final de minha apresentação tive o maior abraço coletivo da minha vida, das dezenas de pessoas que compartilhavam comigo aquele momento. Inesquecível.
E já que inaugurei esse espaço para compartilhar com vocês ideias, sensações, sentimentos e textos, aqui vai o poema que li naquela noite de sarau. Cabe dizer que entenderá/sentirá muito mais esse poema quem já viu o filme do Coringa, de 2019, por conta das várias referências espalhadas pelo texto.
“Somos todos palhaços.”
O mundo pode ser um lugar muito cruel. A humanidade pode ser monstruosa.
O palhaço que me fazia rir na TV, em meio a balões com onomatopeias quadrinhescas, agora me faz prender a respiração e tensionar os músculos.
O arrepio na espinha...
A lágrima pela infância perdida.
O futuro que poderia ter sido e não foi.
Um radiador.... Um radiador...
A dor lá no fundo que tem origem nos cantos mais obscuros do ser humano.
O outro?
Que outro?
Eu não enxergo.
“A pior parte de ter uma doença mental é os outros quererem que você aja como se não tivesse.”
A pior parte de ser diferente é os outros quererem que você aja como se não fosse.
Quem sou eu?
“Eu nem sabia que existia.”
Eu existo?
Você me vê?
Como eu sou? Como eu lhe pareço?
Acho que vim ao mundo para trazer mais alegria. Tornar a realidade menos dura.
Um radiador...
Quem olha por nós?
Quem olha para nós?
Ratos invadindo as casas. Lixo espalhado pelas ruas. Escória.
Na TV o autoproclamado “Salvador” é claro: “Palhaços.”
Já tirou sua maquiagem?
O sorriso me desce doído pela garganta. A lágrima afoga meu sonho. Nossos sonhos.
Eu só queria ser feliz. Nós só queríamos que não doesse tanto...
Um radiador...
Minha gargalhada é um pedido de socorro. A mão levantada à espera de auxílio.
À espera...
À espera...
Agora, o sangue dá forma a meu sorriso. A dor me faz levantar.
Eu existo.
Vocês me veem.
Meu lugar no mundo está longe das imagens dos sonhos infantis. Eu não escolhi. Fui arremessado.
Cedo demais.
Mas não num tanque de produtos químicos.
Na apatia do mundo.
Você já esteve lá fora, sua pele em contato com a realidade áspera? Ou ainda vive em sua bolha de julgamentos fáceis e espelhos distorcidos?
Eu sou Arthur Fleck. Eu sou “V”. Eu sou Alex Delarge. Eu sou o Selvagem desse mundo admirável, pedindo por mais lágrimas, por favor...
"That’s life. That’s what people say.
You’re riding high in April
Shot down in May"
“Sou eu ou o mundo está cada vez mais louco lá fora?”
Adriano Santos, sarau de 04/10/2019

